A Casa do Rio Vermelho
Zélia, Jorge e a casa que o dinheiro do imperialismo americano pagou
Jorge vendera à Metro Goldwin Mayer os direitos autorais de seu romance "Gabriela, Cravo e Canela". Não recebera o dinheiro que se poderia imaginar, mas lhe pagaram o suficiente para adquirir uma casa na Bahia. "Comprarei essa casa com o dinheiro do imperialismo americano", dizia rindo.
GATTAI, Zélia. "A Casa do Rio Vermelho", 1999 p.11
A bibliografia de Zélia Gattai está disponível em abundância nos sebos, a preços módicos. Ao emitir a passagem para Salvador, tratei de comprar vários títulos, mas me interessava mesmo saber d'“A Casa do Rio Vermelho”, que considerava parada obrigatória na passagem por lá.
Até então, nunca tinha lido Zélia - dela havia apenas o encanto com “Anarquistas, graças a Deus”, que via na estante de meus pais quando pequena. Jorge, tampouco - sei de Gabriela, Tieta, Dona Flor aquilo que se sabe por ser brasileiro, as referências do caldo cultural.
Só que um dia soube, não sei de que jeito, que Jorge repousava eternamente na Rua Alagoinhas 33, à sombra da mangueira, onde esperava a noite chegar para cobrir de estrelas os cabelos de “Zé”.
Juntos, viveram o tempo que tinham ao sabor dos desejos - tão curta a vida!, como evocava Jorge no livro “Navegação de Cabotagem”.
No ritmo do gosto simples, li as páginas possíveis antes da viagem e bateu-me o encantamento pela Bahia. A cada página lida mais lúdica se tornava a espera, mais desejada a viagem.
Entre os que escrevem diz-se que a vida é mais incrível que a ficção. Podia ser hoje, a Salvador que eu viveria, mais incrível que a de Zélia e Jorge, cercados de amigos na Casa do Rio Vermelho? Trocando quadros de Di Cavalcanti por um filhotinho de cachorro? Recebendo Clarice Lispector para uma entrevista inesperada? Remendando baianas esculpidas por Carybé? Colocando José Wilker nu saindo da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, na cidade-berço do catolicismo brasileiro, em um dos três filmes inspirados em livros de Jorge rodados simultaneamente na cidade?
Pois foi. Sim, ainda mais incrível, pois Zélia e Jorge me apresentaram à Salvador deles. Assim como Caetano me contou da emoção de ver e ouvir “o Olodum balançando o Pelô”, os Amado me contaram do antigo Rio Vermelho, onde a casa deles se instalava quase isolada em um morro - um contraste com o bairro grande, povoado e pulsante que visitei todos os dias da viagem.
Ali, no jardim, deixaram o “guardião da casa”, uma obra de arte representando um Exu, “enorme, formoso, de cauda virada, chifrinhos e estrovenga”. A chegada dele rendeu um pito de Mãe Senhora a Jorge, que invocou o forte orixá sem a devida reverência. Depois de “assentado” com as instruções da mãe-de-santo, Exu passou a receber oferendas às segundas-feiras. Meio copo de cachaça sobre a cabeça acompanhada de uma música ensinada por Pierre Verger e assoviada por Zélia.
No dia 19 de janeiro - um domingo - quis saber se no dia seguinte a cachaça estaria servida. Não perguntei a ninguém.
Comunista, graças a Deus
"Jorge era tão comunista que conseguiu ser expulso da França!", me contou entre risos minha analista enquanto eu compartilhava da ansiedade por chegar a viagem a Salvador. Disso, não tinha ideia. Soube que Jorge, filiado ao PCB, foi preso 11 vezes só em 1932. Exilou-se na Argentina e no Uruguai entre 41/42 e, entre 48 e 52, na Europa. Foi expulso da França pouco após a Segunda Guerra Mundial, quando a Guerra Fria recrudescia e a União Soviética fazia frente aos Estados Unidos.
Jorge voltou ao Brasil, elegeu-se deputado, desfiliou-se do PCB mas nunca deixou de lado o ideário comunista. Foi fotografado ao lado de Stálin e Fidel Castro. Visitou Cuba várias vezes, inclusive para a inauguração da Escola de Cinema de Gabriel García Márquez.
Independente disso - ou apesar disso, não sei ao certo - Jorge e Zélia retornaram várias vezes a Paris, como se pode ver nas cartas trocadas entre eles, seus filhos, netos e amigos, expostas na Casa do Rio Vermelho. Entre elas, destaco uma:
Em 1978, Zélia escreve à neta Maria João, em papel de carta do Hotel de l'Abbaye, em Paris. É um texto lúdico e amoroso, no qual ela conta de uma ida ao teatro. Ali, servem jantar em uma mesa "toda linda, com um abajurzinho para iluminar um pouco". O espetáculo se passa na penumbra e, de repente, começou a subir um aquário imenso, quadrado, no meio do teatro, com um golfinho dentro! Guiando a apresentação do cetáceo, uma bailarina seminua, que em determinado momento fica "de peito de fora". Com a intimidade de avó e neta, Zélia segue narrando de forma divertida o que se passou ali.
Creio que assisti apresentação parecida, em 2012, sentada em mesinhas na penumbra, vendo surgir um aquário gigante repleto de cobras amarelas, com dançarinas seminuas domando os répteis. Suponho que Zélia e eu visitamos o Moulin Rouge, com 33 anos de diferença.
Lar
Passeando pelo jardim repleto de árvores variadas, altas, coalhado de orquídeas, visitado por sapos, micos e habitado por três tartarugas (que consegui contar), lembrei-me das passagens em que Zélia descreve, no livro, a aridez do terreno comprado, as tentativas de se livrar das formigas que atacavam as mudas, a lichia que era pitanga e tantas histórias da construção e seus caquinhos de azulejos colorindo o chão.
Repleta de "cacarecos" e obras de arte reunidos ao longo de duas vidas regadas a histórias, amigos e curiosidade, a Casa do Rio Vermelho é única. Um cais para onde Jorge retornava depois de enfrentar o medo de avião, o familiar depois do maravilhamento com o desconhecido.
Retorno de Salvador e ainda tenho algumas páginas para ler, de volta ao meu atracadouro nas Minas Gerais. A tarefa infindável e prazerosa de construir o próprio lar.
Dicas
Para ler "A casa do Rio Vermelho", sugiro procurar na biblioteca da sua cidade ou comprar em um sebo.
Quando em Salvador, visite a Casa do Rio Vermelho, na rua Alagoinhas 33. Basta ir ao local de terça a domingo. O horário de funcionamento é das 10h às 18h, mas vale conferir se há algum fechamento excepcional. A entrada custa R$20,00 a inteira para adultos, há meia-entrada e reduções para quem reside em Salvador.
Quando na Casa do Rio Vermelho, não deixe de passar na loja do museu, repleta de itens inspirados na casa, nos livros e na vida de Jorge e Zélia. Dá pra comprar até camisas como as de Jorge! Ou um azulejo estampado com uma das frases mais famosas do escritor: "Se for de paz, pode entrar".
As informações usadas neste texto são da visita à Casa do Rio Vermelho e do livro “A Casa do Rio Vermelho”, de Zélia Gattai. Todas as fotos são minhas, feitas durante a visita.
Um agradecimento especial a Raissa Mattos e Fernanda Cristo, amigas que foram parte da minha "casa" em Salvador e que transformaram uma viagem tão curta em quase uma vida.
Amiga, que relato gostoso! Morei em Salvador, mas nunca cheguei a visitar a casa. Desconfio que estava fechada pra reforma ou algo do tipo. Pretendo visitar a cidade esse ano, lembrarei de você quando for tomar um café mental com jorge e zélia.
beijo
Me deu vontade de visitar Salvador e ler Zélia Gattai. =)
Tive uma desilusão com Jorge Amado há alguns anos, quando li Tocaia Grande em inglês (traduziram o título pra "Show Down"). O que incomodou foi a hiper sexualização as mulheres. Entendo que é parte do estilo dele, das quando ele começou a tratar uma menina de 12 anos como se fosse uma ninfeta, não deu mais pra mim 😅
De qualquer forma ainda quero tentar outros clássicos, e vou colocar a Zélia na minha lista.