A vida por trás de um hiato
Cento em cinquenta e seis dias não narrados são meses em que nada aconteceu?
Se passaram 156 dias desde que escrevi aqui pela última vez. Foram dias de sol e dias de chuva, dias de carro e dias de avião e até dias de caminhão. Mas não houve um dia sequer em que não senti saudades da escrita.
Houve dias de contas, muitas contas. Houve dias de caixas, muitas caixas. E foram 156 dias para que eu encontrasse meu lugar e meu momento para me sentar em meu computador e escrever.
O que aconteceu com a maior parte dos que recebem esses textos em suas caixas de entrada, não sei. Por aqui, houve muitas transformações de vida e poucas tornadas palavras.
Celebrei a passagem de 2022 para 2023 com uma amiga muitíssimo querida, rodeada pelos amigos dela - que por aquela noite se tornaram também meus amigos. Fazia frio, eu estava no Sables d’Olonne, uma cidade de praia na costa Oeste da França. Eu tinha planejado passar o ano novo em um hotel em Paris, sozinha, assim como os três dias anteriores. Porém, ouvi o desejo de passar mais tempo com minha amiga, doei algumas dezenas de euros pra SNCF, mudei os planos e aproveitei um inverno delicioso na praia com companhias muito queridas.
O que fazemos na virada aponta para o que faremos durante o ano, já me disseram algumas vezes. Nos 155 dias seguintes disse “sim” a várias outras oportunidades que se apresentaram. Foi assim que no dia 1 de janeiro fiz uma viagem de trem, embarquei para casa, cheguei a Belo Horizonte no dia 2 e comecei em uma nova empresa no dia 3 de janeiro.
Caminhos
Entrando na adolescência eu gostava muito de livros de mistério e de pistas. Um dos meus favoritos deixava que eu montasse a história como quisesse. Lia um capítulo e no final dele tinha a orientação: “se você quiser pegar a estrada da esquerda, vá para a página x. Porém, se quiser pegar a estrada da direita, vá para a página y”.
“Sim” e “não” são operadores do mesmo tipo - assim como não fazer nada e deixar “a vida” decidir por você. Porém, não são tão claros quanto no livro e não dá pra roubar e recuar.
Penso nisso pois ao dar o “sim” para o novo trabalho eu não podia imaginar a quantidade de boas “encruzilhadas” que apareceriam depois. Foi assim que nesses 150 dias que se seguiram eu fui várias vezes à minha livraria favorita, bebi cafés variados com muitas amigas, revi pessoas queridas, adotei a Meg, pensei que seria lar temporário para Kit e Kat, aceitei que seria lar definitivo para as duas, conheci jornalistas que admirava pelo rádio, conheci jornalistas que desconhecia e que me conquistaram, fui acolhida por uma equipe diversa, engajada e com muita vontade de crescer, aluguei uma casa no pé da montanha, aluguei meu apartamento para amigos viverem suas novas histórias, fiz festas na casa nova, celebrei em família os 40 anos de união dos meus pais, acendi uma lareira, celebrei os 42 do meu marido e celebrarei hoje novamente.
Mas o que me deu vontade de escrever na manhã deste domingo foi a realização de um desejo meu, nascido e percebido em 2016.
“Um teto todo seu”
No inverno de 2016, depois do tenebroso período de avaliações na Sorbonne, eu já tinha começado o estágio, marido tinha voltado do Brasil, era sábado e fomos para aquele que já era um dos meus programas favoritos de sábado - visitar uma livraria.
Eu já conhecia a Livraria Portuguesa em Paris, várias livrarias e sebos de livros em inglês, as livrarias de títulos de segunda-mão, as livrarias de livreiros queridos do meu bairro com indicações escritas à mão, a livraria especializada em culinária. Tinha chegado a vez da livraria especializada em viagens. Como bônus, a gente poderia ir à Rue Sainte-Anne, local tradicional de restaurantes de ascendência asiática, onde provei Karê e Okonomiyaki pela primeira vez.
A Librairie Voyageurs du Monde não me conquistou pela variedade de livros ou destinos apresentados. Foi por causa dessa mapoteca:
A janela enorme, a luz baixa, a poltrona confortável, a decoração aconchegante, o piso de madeira. Amor à primeira vista. Só fui embora quando a livraria fechou.
Essa foto está há 7 anos no meu celular, sobrevivendo a todas as trocas de aparelho. Só meu marido sabia desse desejo antigo, que começou com essa janela.
Foi por causa dela que tive certeza, ao ver a foto da casa que alugamos, que deveríamos nos mudar.
Nos quase três meses que estamos aqui, quase comprei cinco ou seis mesas diferentes. Até que nesta semana encontrei a mesa perfeita, de segunda mão, e ganhei um tapete maravilhoso da minha madrinha. Ontem, tudo chegou.
Neste domingo, acordei às 7h, pedi croissants no aplicativo, passei um café, peguei o Mac que me acompanha desde a Sorbonne e vim celebrar o desejo realizado.
Li o jornal, li algumas newsletters e uma delas me chamou a ouvir outro desejo, o da escrita. Aqui estou, deixando as palavras fluírem e registrando o cotidiano dos últimos 156 dias.
Na vitrola, Lulu Santos acaba de cantar que “nós somos medo e desejo”. Medo do próprio desejo, do que podem partir ou surgir dele. A cada “sim” temos medo dos “nãos”. O antídoto por aqui tem sido tempo, escuta, acolhimento e confiança. Ainda que o “sim” implique em mudanças ruins, como menos tempo para ler e escrever, logo a vida vai mudar novamente e tudo vai se ajeitar.
Inspirações
- , indicada pela , que me destravou a escrita hoje e ajudou a perceber mais uma camada da minha relação com Paris. É o banal, porém nada é banal.
Nesses 7 anos escrevendo, falar sobre comida é sempre o meu ponto de partida. Mas o comer é só um lugar que eu acesso muito facilmente por razões pessoais, que fazem parte da minha história. É justamente porque eu tenho uma trajetória com esse assunto que ele quase sempre me leva a reflexões de outra proporção, em que eu fico muito à vontade pra navegar.
Por partir dessa experiência comum - porque afinal, não dá pra ignorar a comida se assim a gente quiser, todo mundo precisa comer -, fui percebendo o quanto ela permitia que os outros também pudessem construir um sentido único sobre os assuntos que eu escrevia. Eu estava de algum modo ancorando a conversa em experiências próprias, mas que falavam com algo que é partilhado: o banal, que faz parte de todas as nossas vidas, e que se conecta com questões profundamente humanas.
A música de Lulu Santos, no disco Último Romântico, um dos três que ouvi nesta manhã. O cantor é um grande letrista e cria frases como esta aqui:
“Somos sozinhos nessa multidão”.
A autobiografia da Rita Lee. Foi só depois da morte dela que fui conhecer verdadeiramente a artista e me surpreendi com tantas histórias e vivências interessantes.
Estou lendo o livro aos pouquinhos e gostando muito das histórias que ela compartilha. Até agora estou na fase da infância e da adolescência, rindo com as besteiras que ela compartilha, com as peraltices de criança, com as dores da vida em família.
Não posso deixar de pensar quantas vidas de mulheres desconhecemos simplesmente porque elas não puderam contá-la. Também por isso estou aqui, registrando alguns dias que podem não ser nada, mas que podem destravar algo em alguém, assim como Carla e Rita fizeram por mim.
Fiquei feliz de ler o seu texto e saber que fiz parte um pouquinho. Eu amei ver a foto da janela da livraria e depois a sua. Fiquei pensando que é raro a gente ter uma clareza desse tamanho sobre como algo que parece ordinário nos impacta, mas parece que é como se essa clareza fosse iluminando o restante das coisas em volta. E é bonito de ver! Um enorme abraço
Olha só!!! A Carla Soares é demais, que bom que ela te ajudou a escrever. Valeu a pena, adorei o texto. Beijos