Paraty, Lillebonne, Araxá
Um encontro entre Annie Ernaux, escritora, e Lázara Borges, minha avó
Araxá, capital secreta do mundo, 7.260 km ao sul de Nova Iorque. É assim que meu pai apresenta sua cidade natal. Lugar alto onde primeiro se avista o Sol, terra de Dona Beja e de águas termais. Cidade eterna, tal qual Roma.
É a casa das minhas memórias de infância. Minha mãe também nasceu lá, em todas as férias e feriados a gente ia visitar os avós maternos e paternos. Ali vivi muitas alegrias e foi também onde aprendi o que é o luto. No passar dos anos as visitas foram ficando mais espaçadas e, neste 2022, voltei à cidade para me despedir de Lazinha. Foi seu retorno derradeiro, depois de uma temporada morando perto de nós na capital.
Lázara Borges foi uma mulher lindíssima. Vaidosa, cabelo sempre arrumado, unhas pintadas, batom entre rosa e vermelho nos lábios.
A gente tinha algumas tradições. Quando eu era criança, enviar e receber cartas. Adolescente e adulta, se presentear em todas as datas festivas e viagens. Foi no 5 de agosto que ela nos deixou e em todas as ocasiões desde então meus olhos seguem buscando os mimos ideais pra ela.
Na semana passada estive em Paraty e Lazinha esteve comigo durante todos os dias. Ela teria gostado das ruas de pedrinhas, sem carros, com lojas diversas por todos os lados. Teria gostado dos chazinhos e cafezinhos e também do sorvete diet. No automático, quase comprei uma bolsinha de algodão cru bordado pra levar pra ela. Pra em seguida me lembrar que, lá do céu, o presente dela era minha lembrança.
No dia 15 de agosto de 1933, em Araxá, nasceu Lázara Abadia Alves Barreto. Algum tempo depois, casada, se tornou Lázara Barreto Borges, adotando o sobrenome do meu avô. No dia 1 de setembro de 1940, em Lillebonne, nasceu Annie Duchesne. Ao se casar, adotou o sobrenome do ex-marido Philippe e se tornou Annie Ernaux.
Ir a Paraty e participar da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) era um sonho e neste 2022 Annie Ernaux iria pra lá, com seus 82 anos e muitos livros escritos. Eu fui também, pra encontrá-la. Não consegui nenhum dos 500 e poucos ingressos do auditório da Flip. No sábado, 26/11, me juntei às milhares de pessoas que correram para vê-la no telão da praça, ainda mais cheia que no dia do jogo do Brasil.
Me emocionei muito quando vi aquela senhora, cabelos louro-escuros, vestido azul e xale colorido. Era Annie, era Lazinha. O mesmo porte, um jeito parecido de andar, uma cor semelhante nos cabelos. Um sorriso leve no rosto, as marcas dignas da idade na pele. Uma saudade avassaladora.
Sete anos, 8.988 km separaram os nascimentos de Lazinha e Annie. Naquele sábado eu me preenchia da potência da francesa e pensava no quanto uma aleatoriedade, um acaso como o local de nascimento podem determinar tanto de uma vida.
Quando a conheci, Lazinha vivia na rua Belo Horizonte, o que sempre me pareceu uma grande ironia. Havia dois quartos de dormir - um grande, com cama de casal. Outro menor, com três camas de solteiro. Era lá que Lazinha dormia comigo. Por um tempo, achei que era amor de vó. Depois entendi que ela dormia ali sempre, estivesse sozinha ou não.
Annie também se casou e teve filhos. Em um momento, se separou. Na vida dela, isso era (e é) possível. Acho que na de Lazinha não era, mas nunca tive coragem pra perguntar.
Annie se formou na universidade, se tornou professora. Em uma das últimas conversas que tivemos, Lazinha me contou uma tristeza da infância. Gostava muito de estudar, mas seu pai era muito doido, dominante e se mudava de casa com frequência. Por isso, ela interrompeu os estudos várias vezes.
Um dia, Lazinha quis ser freira. Ela gostava de estudar, achava lindo ver as “martinhas” andando pela rua. Na época, vivia na zona rural e se mudou para um colégio no centro. Estava feliz, mas sua avó Salvina foi buscá-la, sentindo muitas saudades da neta. Lazinha voltou para casa, deixou os estudos e a vida religiosa. Ainda bem, pois do contrário eu não estaria aqui. Mas, ao mesmo tempo, que pena.
Um dia Annie concluiu um livro, escrito em segredo. Enviou para editores, que o aprovaram para publicação. Ela contou na Flip que o livro revelava coisas muito fortes e extremamente violentas em relação ao marido e à mãe, que na época morava com eles.
“Como era extremamente autobiográfico o livro, era também muito perigoso, eu diria. Bom, eu o assumi totalmente. Eu havia escrito o livro, ele estava lá e ele se tornou algo do mundo, uma realidade. Eu o assumi completamente. No fundo, eu tive um motivo e estava certa de escrevê-lo em segredo. Se não fosse assim, eu me sentiria menos livre. Como não sabia se não seria publicado, eu o escrevia da forma mais livre possível e perseguia meu desejo de escrever até o fim. É um livro de ruptura, eu rompo com a vida na qual eu me encontrava e eu estava me preparando para viver uma outra vida.”
Annie Ernaux, durante a mesa “Diamante Rubro” na Flip. Link.
Dentro dos limites geográficos e sociais que lhe foram impostos, de sua visão de mundo e capacidade de enfrentamento, Lazinha foi revolucionária. Também escrevia - palavras de amor, de conforto, de carinho, de oração. Não sei se já pensou em transformar em livros, em ser publicada. Não me ocorreu perguntar enquanto podia.
As falas de Annie Ernaux me trouxeram muitas outras memórias, comparações, elucubrações. Poderia compartilhar aqui outras delas, como o gosto por fotografias, a importância do lugar de origem, os filhos… mas encerro, por enquanto, com uma frase de Annie. Ela respondia uma pergunta sobre o direito ao aborto, mas resumiu o meu desejo e o das mulheres neste mundo:
“Trata-se de querer ter uma vida tão livre quanto a que os homens podem ter e, portanto, ser capaz de escolher”.
Que texto mais bonito, Marina! Deu pra sentir muito a presença da tua vó na tua escrita e em tudo que você sentiu quando estava em Paraty 💜
Marina que história linda!!
Vc retratou dona Lázara em seu texto falou tudo. Falou da delicadeza, da sabedoria, da bondade, da humildade, vc falou do ser maravilhoso que foi sua avó. Mtas saudades dela!!