Três livros, um tema
A interrupção voluntária da gravidez, mais conhecida como aborto, narrada por três mulheres francesas que tiveram experiências diversas sobre o assunto
Proibido ou permitido, tenho uma certeza quanto ao aborto - é impossível ser indiferente ao assunto. Para as mulheres, ainda mais.
Para temas controversos sobretudo, creio ser ainda mais importante informar-se bem para formar uma posição. E nisso, também, a literatura pode ajudar.
Sugiro, aqui, três livros escritos por mulheres que narram suas experiências com o tema - Annie Ernaux, Simone Veil e Colombe Schneck, todas francesas. Cada uma de uma forma foi afetada pela proibição do aborto e posterior discussão e aprovação da lei que permite a interrupção voluntária da gravidez na França, desde que seguidos os critérios definidos. Hoje, tal garantia está prevista na Constituição Francesa.
"O Acontecimento", Annie Ernaux
Estudante universitária, primeira da família a frequentar o ensino superior, esperança e expectativa de ascensão social. Grávida. Em 1963, as leis da França proibiam o aborto, o que não impedia que ele fosse realizado. Mais de 40 anos depois de realizar o procedimento, Annie Ernaux revisita a angústia, o medo, a exposição, a forma como foi tratada por médicos. O procedimento rudimentar a que se submeteu, a hemorragia decorrente dele, as humilhações por que passou. Ler a história da autora permite ter um vislumbre da angústia vivida por quem se vê grávida e avalia interromper a gestação. Há muito a pesar, entre sonhos, expectativas, promessas, medos. A decisão é solitária, assim como o percurso depois dela. Esse livro nos apresenta um relato raro, em primeira pessoa, de uma experiência que muitos nunca viverão e que, também por isso, deve ser lida por muitos.
Um trecho:
"Pode ser que um texto como este provoque irritação, ou repulsa, ou seja considerado de mau gosto. Ter vivido uma coisa, qualquer que seja, dá o direito imprescritível de escrevê-la. Não existe verdade inferior. E, se eu não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo."
O acontecimento, Annie Ernaux, página 35. Editora Fósforo
"Uma lei para a história - a legalização do aborto na França", Simone Veil
Novembro de 1974. Simone Veil leva o "78651" marcado no braço, prova da sua sobrevivência ao holocausto ainda adolescente. Magistrada respeitada, é Ministra da Saúde da França. Do então presidente Valéry Giscard d'Estaing, recebeu uma missão, que levou como uma honra e um dever - criar, defender e fazer aprovar a lei que autorizava a interrupção voluntária da gravidez na França.
A França vivia uma situação que me lembra muito a do Brasil hoje. Eram 300 mil abortos clandestinos ao ano, apesar da lei proibindo o procedimento. Pelo menos 300 mortes anuais e milhares de mutilações corporais, todas de mulheres pobres, pois as que tinham algum dinheiro atravessavam fronteiras para realizar o procedimento.
O discurso que Simone faz na Assembleia Nacional em defesa do assunto é firme, esclarecedor, sóbrio - e emocionante. Convicções pessoais de lado, trata do respeito à lei, da autoridade do Estado e da saúde pública. Além do discurso, o livro traz contextualizações sobre os embates à época, que também foram violentos e muitas vezes vulgares, e uma longa entrevista com Simone Veil anos após a aprovação.
Uma leitura que reacende a esperança em meio a um debate polarizado, de que talvez com a liderança certa e os argumentos corretos possamos levar o debate ao que realmente importa.
Um trecho:
"Essas mulheres não são necessariamente as mais imorais nem as mais inconscientes. Elas são 300 mil a cada ano. São as mulheres com quem convivemos todos os dias e cujos dramas e desespero quase sempre ignoramos.
[...]
Eu afirmo com toda a minha convicção: o aborto deve continuar a ser a exceção, o recurso último para situações sem solução.
[...]
Nenhuma mulher recorre com alegria ao aborto. Basta escutar as mulheres.
O aborto sempre é um drama e permanecerá sempre um drama."
"Dezessete anos", Colombe Schneck
1984, a interrupção voluntária da gravidez é permitida por lei na França. Aos 17 anos, Colombe Schneck recorre a ela. O discurso de Veil ecoa aqui: "ninguém recorre com alegria ao aborto. Basta escutar as mulheres. O aborto sempre é um drama".
Schneck o faz aos 17 anos, uma experiência que "não é banal, nem conveniente".
Filha de médicos, moradora da margem esquerda e progressista do Sena em Paris, Schneck nasceu em um meio em que a liberdade parecia ilimitada. Mas não para uma mulher, como ela entende ao se dar conta de que o corpo que engravida pode ser um limite. Ela opta por interromper a gravidez, buscando manter sua liberdade. Mas não é exatamente o que acontece.
A legalização não torna o procedimento menos duro ou angustiante e nem a decisão menos solitária. E nem o depois se torna menos solitário ou menos difícil de lidar. Não se fala sobre o assunto em lugar nenhum - em família, entre amigos, na literatura, na imprensa. Na biblioteca, aborto está nas prateleiras de "lei" e "saúde".
Colombe Schneck nos mostra que mesmo quando "dá certo" e ocorre em meios "privilegiados" no nosso senso comum, não temos ideia do que se passa no corpo, na mente e na vida de uma mulher que toma essa decisão. O que está em jogo, nesse caso, é que o procedimento possa ser feito de forma mais digna e que não coloque em risco a vida de quem decidiu seguir por esse caminho.
Um trecho:
"Continuo com medo de não menstruar ao fim de cada mês. Terei esse medo por anos, por dez anos, até o momento em que, enfim, chegará um sentimento novo. Não quero mais o sangue, estou pronta para ter um filho.
O acontecimento tem um fim? A história está terminada?
Haverá outros garotos, a morte de meu pai, a solidão, o casamento, a morte de minha mãe, dois filhos, a solidão de novo, outros homens.
Mas durante todo esse tempo, pensei nele, nesse filho que não tive e que não tem nome".
"Dezessete anos", Colombe Schneck, pág. 66, Editora Relicário
Sensacional essa sequencia de dicas! Uau!
Que texto precioso, amiga. Obrigada pelas indicações e pela delicadeza no recorte de cada uma delas. Beijo.