A cidade é uma ilha de edição e apagamento
Onde estão os vestígios de Marie Curie e de outras mulheres que viveram em Paris?
‘Impensável’, dizia a manchete do The Guardian que vi em uma das rondas das últimas semanas. ‘O laboratório parisiense de Marie Curie foi salvo dos tratores… por enquanto’, terminava o título. Foi pouco depois que enviei a edição de Ano Novo. Estranhei e cliquei - um pouco alarmada e absurdada, admito - pois supus que a matéria se referia ao local onde hoje funciona o Museu Curie. Pois bem, quase.
O Museu Curie fica no 5, Rue de Pierre et Marie Curie, em Paris. É um prédio de esquina. Ao lado, fica a Rue d’Ulm. Logo atrás do prédio do museu está o Pavillon des Sources, no 26, Rue d’Ulm. Fica na região que chamamos de Quartier Latin, onde estão a Sorbonne e os prédios de várias outras universidades.
Diz a reportagem que em 1909 o Instituto Pasteur e a Sorbonne fizeram um convênio para construir laboratórios para Marie Curie naqueles endereços. O Pavillon des Sources era um prédio de tijolo e pedra onde ela e sua equipe trabalhavam a matéria-prima para os experimentos radioativos. Por isso, o Pavilhão está fechado - é um local considerado contaminado por radioatividade excessiva. Em março de 2023 foi aprovado um projeto para que ele seja descontaminado e demolido. No local, que pertence ao Instituto Curie (que mantém vivo o legado de Marie e família além de seguir com pesquisas), seria construído um prédio novo e maior. Agora, no início de fevereiro, há propostas para que o prédio seja demolido e reconstruído alguns metros adiante.
Há, porém, um movimento contrário, que conseguiu impedir a demolição - por ora - apelando ao presidente Macron. Eles defendem que o local seja classificado como Monumento Histórico e, com isso, protegido.
Paris pode parecer um museu a céu aberto. Mas, assim como as outras cidades do mundo, é um canteiro a céu aberto. Uma cidade que nasceu durante o império romano - do qual tem entre os poucos resquícios as Arènes de Lutèce e o Museu Cluny ali perto do Museu Curie - e sobreviveu a guerras.
O Louvre é um grande exemplo disso. A visita ao ‘Pavillon de l’Horloge' (Pavilhão do Relógio) mostra como a construção passou de fortaleza, a palácio e a museu ao longo dos séculos. O espaço da cidade é limitado, o metro quadrado é caro e terrenos inutilizados ou prédios subutilizados podem se tornar - muito - dinheiro.
Na era de Haussmann e Napoleão, quando Paris se tornou a cidade dos grandes bulevares, das pontes, dos prédios de altura uniforme e cor bege, foram apagados os cortiços, as casas em cima das pontes, as parcas condições de higiene. A Ariela K. escreveu uma edição excelente sobre isso.
Podia ter sido mais, se o projeto de Le Corbusier fosse realizado. Mas quanto disso é ‘progresso’ e quanto disso é ‘apagamento’?
De volta a Marie Curie, o Guardian ouviu Claudine Monteil, especialista em direitos das mulheres, historiadora e ex-diplomata francesa que escreveu livros sobre a cientista e que fez um questionamento sagaz:
“Peça às pessoas de todo o mundo que nomeiem mulheres francesas famosas e elas apresentarão Joana D'Arc e Marie Curie. Qual seria a reação se eles propusessem fazer isso [demolir um prédio] em algum lugar ligado a um homem tão famoso como Marie Curie?”
Marie Curie tem dois prêmios Nobel. Sua filha, Irène, mais um. O genro, outro. O marido Pierre, outro. Na parede do Museu Curie há uma foto - 5 prêmios Nobel. Suas descobertas salvaram vidas na Primeira e Segunda Guerras e seguem salvando até hoje em tratamentos contra o câncer e outras doenças.
Além do Museu, o que mais restou?
Mesmo uma mulher que recebeu dois prêmios Nobel é lembrada, muitas vezes, pelas fofocas de sua vida pessoal. Marie teve que enfrentar a fúria da sociedade francesa contra ela, por ter se envolvido com um homem casado após a morte de Pierre Curie. Quase teve o segundo prêmio Nobel não entregue - e, por isso, no site do Nobel não encontramos discurso dela, pois ela nunca discursou.
Você consegue conceber a possibilidade de um homem viúvo quase deixar de receber um prêmio mundial reconhecendo sua performance no trabalho e importância para o campo que estuda por ter se relacionado com uma mulher casada?
A poucos metros do Museu Curie, no Panthéon, repousam diversos homens notáveis. Até 1995, a pátria reconhecia apenas os grandes homens. Nem mesmo Joana D’Arc estava ali. Pois bem, em 1995 foi trasladada a primeira mulher para o local. Sim, Marie Curie, mais uma vez pioneira. Depois dela, vieram Geneviève de Gaulle-Anthonioz, Germaine Tillion, Simone Veil - que teve papel preponderante na lei que permite o aborto na França - e Joséphine Baker.
Um contraponto: Napoleão Bonaparte está sepultado no Invalides, um mausoléu próximo à Torre Eiffel, ornado um domo dourado, sob o qual repousa em uma urna gigantesca, de pedra esculpida, o imperador. Ao redor dele, louros às suas vitórias. Mesmo depois da prisão e do exílio.
A cidade tem, sim, que mudar. Mas é legítimo e aceitável que, para isso, apaguem ou editem principalmente os lugares por onde passamos, nós, mulheres?
Se demolissem os Invalides, imagina o tanto de espaço que esses caras não teriam para construir prédios feios e cheios de espelhos? Mas é claro que não é a primeira opção, não é mesmo?
Obrigada pelo ótimo texto, espero que tudo esteja de pé até minha próxima ida a Paris... Espero poder ver as coisas a tempo...
beijos.
Marina, amei o conteúdo desta newsletter. Estou cada vez mais encantada com Marie Curie, sua força e coragem. E o contexto que você trouxe para gente é muito rico.