Saí do cinema depois de “Ainda estou aqui” faminta de Eunice. “Quando eu nasci, ela já tinha lido de tudo”, me diz Marcelo Rubens Paiva oferecendo um bocadinho de sua mãe no livro que inspirou o filme.
Leio cada página como quem degusta uma iguaria, dividida entre a vontade de sorver mais e o receio de que acabe. Sou uma mulher de pequenas obsessões, entre elas puxar todos os fios possíveis de temas que me interessam.
Teci poucos fios do novelo de Eunice até agora. Mas puxo aqui a pontinha que se entrelaça a outro um pouco mais encorpado - o de Violeta Arraes. Em uma cena do filme a família Paiva se junta para ler uma carta de Veroca e os irmãos se alvoroçam ao saber que ela conheceu Gilberto Gil na “casa dos Arraes”.
O livro de Marcelo Rubens Paiva não me ajudou a saber se a carta é verdadeira. No entanto, confirma que Veroca “esteve com os exilados em Paris” e que, como no filme, sabia bem mais do que os irmãos sobre o que se passava no Brasil.
Embaixada
Faz total sentido que Vera tenha ido à casa dos Arraes em Paris - era o que faziam os exilados após o Golpe Militar de 1964. A Embaixada Oficial do Brasil na França não prestava ajuda nem serviços básicos, chegando ao cúmulo de negar a emissão de passaportes para brasileiros - bebês inclusive. Por isso, o endereço que muitos buscavam era o da Rue Chapon, na região do Marais, onde viviam Maria Violeta Arraes Gervaiseau e seu marido, Pierre Gervaiseau.
A “Rosa de Paris” ou a “Dama dos Perseguidos”, como Violeta ficou conhecida na época, abriu sua casa para Gilberto Gil, Caetano Veloso, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Felipe de Alencastro, Celso Furtado e Rosa Freire d’Aguiar.
Os Arraes Gervaiseau, no entanto, eram solidários com todos os exilados, conhecidos ou não, e de nacionalidades várias - brasileiros, chilenos, africanos. Ajudavam-nos a se instalar na cidade e organizar a vida, servindo como ponto de apoio. Violeta encabeçava a Frente Brasileira de Informações, para a qual não hesitava em acionar todos os seus contatos na França. Era premente denunciar a ditadura vivida no Brasil e auxiliar em demandas mais “mundanas”, como as do passaporte.
Irmã de Miguel Arraes e amiga de Dom Hélder Câmara - também por isso perseguida no Brasil - deixava sua casa e seu endereço à disposição. Só fechou a porta uma vez1. Circulava à boca miúda a informação de que Sérgio Fleury, torturador notório, estava na cidade. Aterrorizada, Violeta não ousou voltar para casa.
Memória
“Durante anos, no Brasil, o nome da minha família foi riscado do mapa”, constata Marcelo Rubens Paiva em outro trecho do livro. Em alguns meios segue riscado ainda hoje, assim como o de outras famílias fortemente impactadas pela ditadura.
Entendo que a memória possa se apagar aos poucos em decorrência do Alzheimer, mas me ofende que a memória de mulheres como Eunice e Violeta se apague por inação.
Caetano Veloso conta uma passagem deliciosamente terna de sua vivência com Violeta Arraes nesta entrevista a Rosiska Darcy e Antonio Cícero. Deixo que você leia e descubra como uma conversa com a Rosa de Paris o estimulou a voltar ao Brasil e, posteriormente, trazer Moreno Veloso ao mundo.
“Foi uma mulher importantíssima na minha vida”, exalta Caetano. “A gente tem que homenageá-la, falando dela”. Das Rosas, das Violetas, das Eunices e de tantas mulheres que teimam deliberadamente em apagar.
“Les brésiliens à Paris au fil des siècles et des arrondissements”, de Adriana Brandão, na página 50.
Que maravilha conhecer essa hiaotiea através de vc, amiga. Ha muito o que se contar desse nosso país. Um beijo
Tenho um caso interessante, assisti o filme e na saída encontrei com uma vizinha de minha mãe, que parente dos Arraes (só que do lado da família que foi pro Ceará, a vizinha no caso está perdida em Mato Grosso).
Ela me contou que ouvia histórias dessa casa.