Este texto é uma revelação de amiga oculta. E também um marco pessoal. Neste 2022 de muitas mudanças me dei a chance de escrever mais. A partir disso surgiram muitas boas trocas. Em novembro participei d’ “O texto & o tempo”, um fim de semana de conversas sobre a escrita de newsletters. Entrei para um grupo de Telegram em seguida e a cada dia aprendo mais, converso mais, troco mais com essas pessoas que fazem newsletters e também são entusiastas da palavra escrita e do digital. Gostaria de escrever um texto para cada um deles agradecendo, mas o tempo me impede. Então, este amigo secreto será meu “muito obrigada” individual porém coletivo. Funciona assim: sorteado o nome do(a) amigo(a), a gente lê newsletters que ele(a) escreve e envia uma cartinha de presente. É o que você vai ler agora. E o único link deste texto revela minha amiga oculta. Espero que gostem, obrigada pela leitura.
Oceano Atlântico, 17 / 18 de dezembro de 2022.
Querida amiga oculta,
É o mesmo voo das 16h30, mas nunca é o mesmo voo das 16h30. Na poltrona 20C já se passaram 2h30, um “poulet”, um café, 30 minutos sobre as origens de Gru e as páginas finais de “Dash & Lily”. Deve ser a 24a vez que atravesso o oceano nessa direção, duas décadas transcorreram desde o último pouso no Charles de Gaulle. Mas as circunstâncias não poderiam ser mais diferentes.
Já faz 19h e cinco dias que soube da hospitalização. Três mil minutos depois, “descansou”. A eternidade comporta muitos significados e muitos eufemismos.
Acima do trópico de câncer o outono tem sido frio. Na última segunda, os flocos de neve começaram a cair, demarcando o início da hospitalização. A cidade foi se encobrindo, o céu esbranquiçado, as ruas e telhados sustentando camadas brancas que se derretem e deixam tudo aguado. Da janela do CTI nada se via. Já pela janela do novo quarto a neve era visível, encobria paulatinamente a cidade. A respiração rareou, na cadência dos flocos. E, juntos, cessaram.
Estou a 11 mil metros de altura e me movo a quase mil km/h, ainda que me sinta praticamente em inércia. Há uma espera, faltam horas para que o último ato se realize. As exéquias são longas. Na segunda de manhã haverá uma missa, haverá um velório, haverá uma cremação. Depois disso, haverá um sepultamento.
"Talvez o infinito seja o tempo da morte. A espera interminável por uma comunicação que não vai mais acontecer.”.1
Talvez ele tivesse uma palavra a me dizer sobre isso, já que passou por pelo menos duas mortes traumáticas. Sei que a vida demanda urgência, porém precisa respeitar tempos múltiplos de humanos mil. Não conheço todos os códigos, mas nunca me senti à vontade para perguntar a ele como foi viver tudo isso. Só sei que guardou no rosto vermelhinho e rechonchudo um sorriso travesso por toda a vida.
Gostava das curvas sinuosas, que fazia rapidamente em sua Clio azul rasgando as montanhas. E o que era uma enciclopédia perto dele? Se hoje sei tanto sobre montanhas, comidas, vinhos, queijos é muito por causa dele, que fazia questão de me apresentar os lugares e as histórias da sua família e da sua região.
Não posso dizer que não aproveitei, pois seria mentira. Não foi o suficiente, nem nunca seria. Por vezes, pensei que estar perto me impediria de perder. Porém o correr da vida me ensinou que não, cada segundo é uma derrota e também um aprendizado. Já pensei que tudo era controlável, porém sei agora que, raramente, há o que controlar.
Por isso, a vida é urgente. E quando vem a morte, a urgência faz como que entrar no acelerador de partículas. É preciso estar presente. Não há outra resposta possível a não ser honrar a vida que acaba de cessar. O amor metamorfoseado em saudade. Algo se vai, mas muitos algos restam.
Às vezes faremos escolhas erradas no afã de abraçar o mundo. E tudo bem. O que me importa é saber que apresentei minha melhor versão até ali e que não vou parar de evoluir. Que amei profundamente e me aprimorei na arte de reconhecer e apreciar a beleza do mundo.
Sinto muito pela passagem do seu tio, tão perto do reencontro. Que minhas palavras possam ser abraço, assim como as suas me foram. A escrita é a vida, como disse minha autora favorita durante a Flip, e a cada vez que organizamos o luto em palavras ressaltamos a unicidade de tantas vidas.
É por isso que daqui da poltrona 20C escrevo. É a única ação possível, incompleta como é. Que o luto se torne saudade, que a tristeza se torne força.
Um abraço carinhoso,
Marina
Trecho da edição #3 - Querido Clássico: A eternidade e a semana da minha amiga oculta Mia Sodré.
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