Maio de 2022, arrasto uma mala de mão pelo metrô de Paris, uma máscara cobre meu nariz e boca e um anúncio no metrô parece me dar um cutucão:
É preciso viajar para ser feliz? AC, antes da pandemia da Covid-19, eu diria imediatamente que sim. Os meses de tensão, confinamento e trabalho quase ininterrupto, porém, me faziam repensar essa e muitas outras concepções.
Abracei o paradoxo e três dias depois fui visitar a mostra sobre viagens durante a pandemia. É só hoje, ao escrever, que percebo que o antes já era parte da experiência. Meu companheiro inseparável era um papel dobrado em quatro, com a comprovação da minha imunização completa contra a Covid-19. Com ele, eu podia entrar em aviões, receber meu carimbo no passaporte e entrar na exposição após agendar meu horário online.
“Toute personne a le droit de circuler librement et de choisir sa résidence à l’intérieur d’un état. Toute personne a le droit de quitter tout pays, y compris le sien, et de revenir dans son pays”1, diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Aqui, gravada em barras de sabão de Marselha, uma cidade portuária que tem a migração como parte do seu mito de fundação. Os direitos, que nos parecem gravados em pedra, muitas vezes o são em sabão, e podem se desfazer em contato com as mais diversas formas de pensar, ao sabor das águas, das vontades da maioria e do poder econômico.
O viajar por prazer evoca desejo e fascínio. O viajar por necessidade evoca desconfiança - direito que se esvai em bolhas como sabão. O naufrágio do Titanic nos causa comoção e curiosidade décadas depois e o mesmo não podemos dizer de naufrágios de navios que trazem migrantes e refugiados do Oriente Médio e África para a Europa.
Em 2015, uma foto do corpo de uma criança Síria morta após dois naufrágios na costa da Turquia estampou capas na imprensa pelo mundo, mas não foi o suficiente para mudar as políticas migratórias. Você se lembra? Garanto, porém, que se lembra da implosão do submarino Titan, que levava bilionários para visitarem os destroços do Titanic. Ou do naufrágio de um iate na Costa da Sicília neste verão, que matou um bilionário inglês e seus amigos igualmente ricos.
Globo
Sabemos ter uma Terra, única. Sabemos?
E se tivéssemos uma multiplicidade de planetas para usar e colonizar? Uma das provocações da obra acima é a finitude - de que forma estamos usando e desfrutando de recursos limitados e como estamos cuidando deles?
Se na Europa e Estados Unidos o discurso ecológico é cada vez mais forte - principalmente entre as novas gerações de classe média e alta - e orienta escolhas de consumo, em outras partes do globo, América Latina incluída, ainda se aguarda a simples possibilidade de consumir.
Chegada essa possibilidade, como negar a essas populações o direito de viajar por prazer? Por que os que vieram antes deles puderam emitir CO2 sem se preocupar e cabe a eles pagar a conta?
Falando em conta: pagar às companhias aéreas para compensar a emissão de gases do efeito estufa emitidos pelo voo que pego é uma solução ou um paliativo? É algo que me passa pela cabeça a cada vez que me permito o prazer de estar num avião, ao lado das nuvens. E a cada viagem me reafirmo o privilégio de poder usar meu tempo e meu dinheiro para conhecer outros lugares do mundo.
Viajar
Para que viajar? Para além do desejo de ser outra, viajo para alimentar a curiosidade e o desejo de descoberta que me acompanham há anos. Mas sou também produto do nosso tempo e parte da engrenagem da indústria turística alimentada pelas redes sociais e pela minha profissão, o jornalismo. Em meu meio classe média/alta de uma cidade grande, férias são sinônimos de viagem e postar os passeios feitos é algo desejável e, de certa forma, valorizante.
Viajo pensando em meus desejos, mas também em compartilhar o que vi e vivi, o famoso “produzir conteúdo”- mas na maior parte das vezes não publico o que produzo, por razões que tento entender em outros espaços.
Gostava de dizer que subi a Torre Eiffel apenas na sétima viagem a Paris, mas me questiono se era apenas uma tentativa de ser diferente dos outros turistas. Já não falo mais sobre isso, pois hoje acredito que por mais massificadas que sejam as experiências, cada viajante vai viver algo de único em todas elas.
“Fantasmas da sua lembrança” é o nome da obra acima. As autoras encontraram registros de viagens de pessoas de todo o mundo usando apenas a geolocalização nas redes sociais. O anonimato dos turistas nos chama atenção para o efeito - poderia ser eu ali, ou você, pois repetimos os cliques à exaustão.
Se fizermos a busca por “Torre Eiffel” em uma rede social, veremos milhares de fotos e vídeos captados em posições parecidas provando que “estive aqui”.
Para quem mesmo? O que, nesses cliques, nos distingue de todos os outros que estão ou estiveram ou estarão ali?
31 de julho
Há pouco mais de 24 horas desembarquei no Aeroporto Charles de Gaulle, fotografei a esteira rolante do aeroporto, incluí um gif do mascote da Olimpíada de Paris na Torre Eiffel e publiquei no Instagram. Sim, sou como todo mundo.
Há várias fotos que guardei para mim - os livros de Murakami na promoção na Gibert Joseph, as hortênsias ainda verdes no jardim de Saint-Germain en Laye, a mulher grávida na fila da fan fest da Prefeitura com o nome “Gilbert" em sua barriga.
Aqui estou, já nem sei quantas vezes vim e sei que voltarei (sei?). Desta vez, para assistir a algumas das competições olímpicas, um desejo que demorei a notar e que, agora, me empolga.
A pergunta do título continua rondando em segundo plano, não há uma resposta binária. Nos meus pouco mais de 20 dias de férias estarei aberta a experimentar e a questionar.
“Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio e a esse regressar.”, artigo 13º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, retirada do site do Unicef.
O poder de uma pergunta aberta.
Estou aqui a me questionar...